quinta-feira, 5 de abril de 2012

AUTOPSICOGRAFIA - Fernando Pessoa


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.




Somente Pessoa, para conseguir expressar tão bem e em tão poucas palavras a fusão entre a arte e o sentimento.
Lembrei-me deste poema hoje ao responder um post de uma de minhas alunas no Facebook. Decidi então, fazer a análise do poema e publicá-la aqui no blog.

Podemos dividir esse poema em três partes, correspondentes a cada estrofe, para analisá-lo:


1ª) " O poeta é um fingidor".... só o início já justifica a admiração pelo poema, pois instiga o leitor a querer saber a razão de tal declaração e fazer a leitura até o final. A afirmação é explicada e confirmada na sequência, voltando-se para a dor:

"Chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente" , ou seja, para ser transformada em arte, para chegar ao ápice da poesia, a dor deve ser fingida, imaginada, pois não haveria poesia se ela fosse apenas descrita como realmente a sentimos. Logo, podemos inferir que a poesia, a arte poética, não nasce propriamente da dor sentida e vivida realmente, mas no seu fingimento, na imaginação de que essa dor seja maior do que ela de fato é. 

2ª) na segunda estrofe, o poeta "chama" o leitor a "compor" com ele o poema. Ao lê-lo, não sentimos a dor que o poeta sentiu ou imaginou ao escrevê-lo ("as duas que ele teve"), nem mesmo a dor que estamos (nós leitores) deveras sentindo no momento da leitura, mas uma outra dor, mais "interpretativa" do que propriamente "sentida", a dor que nasce ao lermos o poema...a dor que fingimos sentir quando o lemos e o interpretamos, cada um a seu modo, cada um sentindo a dor da forma que mais lhe convém 
(" na dor lida sentem bem").

3ª) "E assim", conclui o poeta, que a arte, a criação, a poesia, nascem em meio a dois extremos controversos, sempre em conflito: o coração (matriz de todos os sentimentos, mola propulsora para a inspiração) e a razão (onde criamos, fantasiamos, inventamos nossas dores, nossas desventuras, nossas tragédias e a colocamos numa sequência lógica para serem transformadas em ARTE).




Fernando Pessoa (1888-1935):  poeta e escritor, nascido em Lisboa (Portugal), pertencente à Terceira Geração do Modernismo Português. Considerado um dos maiores poetas da Literatura Portuguesa e da Literatura Universal, tornou-se muito famoso por suas criações heteronímicas (heterônimos). Seus três heterônimos mais conhecidos são: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. 
Todos os três escreveram obras com seus nomes, possuem personalidades distintas, biografias, data e local de nascimento diferentes, mas todos originam-se de um mesmo corpo e de uma mesma alma: dele mesmo, Fernando Pessoa. 

A diferença entre heterônimos e pseudônimos é justamente essa: enquanto o pseudônimo traz apenas um nome falso ou suposto, o heterônimo traz, além do nome, identidade, personalidade e história totalmente independentes, como se, de fato, fossem outras pessoas, reais e não imaginárias.

Por: Tatiana Arakaki


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